Terapia de Casal: A importância da construção da intimidade na qualidade dos relacionamentos afetivos.

Escrito por Cérebro e Afeto em 17/04/2018

Por que casais buscam terapia?

Dentre inúmeras questões que podem surgir ao longo de um relacionamento afetivo, uma das principais queixas diz respeito à progressiva falta de “compreensão” do parceiro, e o distanciamento do casal: “Eu já canseide falar, mas ele/a não entende.” Ou, “Ele/a já não tem mais paciência comigo”.

É comum remeter a tempos passados, quando a relação estava harmoniosa, comparando ao contexto atual, no qual ocorrem as dificuldades, mas sem perceber ao certo quando começou  aocorrer esse “distanciamento”.

Penso ser impossível esgotar a diversidade de queixas apresentadas, mas em minha experiência, é possível apontar que existe um fator comum a quase todas as crises conjugais: a perda da intimidade.

Dentro da perspectiva da análise do comportamento, intimidade seria uma exposição completa de si mesmo – eu me mostro ao outro tal como eu sou na totalidade, com minhas qualidades e defeitos, expondo inclusive os comportamentos vulneráveis (Cordova e Scott, 2001, apud Passos, 2015).

A intimidade é a interação na qual podemos ser de fato como nós somos: uma interação em que mostramos nossas qualidades e nossos defeitos. E nessa contingência de interação, os comportamentos problemas de cada um, que usualmente poderiam ser punidos em outros ambientes (em outras relações não íntimas) não seriam punidos, eles são até mesmo reforçados. Pois há um reconhecimento do valor da entrega do outro.

Se eu consigo estabelecer essa relação de intimidade de qualidade, eu permito que meu parceiro/a possa de fato me conhecer integralmente: meus problemas, minhas características, pontos fracos e qualidades. Se o outro me conhece, de forma tão íntima, ele me tem inteiro na mão – e vice-versa – e nossa vulnerabilidade exposta, torna a relação de um valor único, pois mesmo sendo eu mesmo, estarei seguro e ofertarei segurança ao outro aceitando-o como ele é e sendo aceito como sou.

Diante daquela pessoa que eu escolho dividir minha intimidade eu me sinto à vontade para chorar, para contar segredos, expor minhas dores, pedir e dar carinho e afeto, consolar, acolher, ser orgulhoso ou chamar a atenção. E no caso específico de relações íntimas num relacionamento afetivo amoroso, além dessas exposições, há a troca de carícias, a liberdade em se expor sem reservas, desabafos, sexo e compartilhamento de vivências que muitas pessoas não têm acesso.

E o que difere a relação íntima de outras relações menos próximas? Justamente o quanto a vulnerabilidade que está presente nessa relação é acolhida, e não punida ou recriminada. A pessoa deve sentir-se aceita pelo parceiro, mesmo expondo seus maiores defeitos e qualidades. E quando essa aceitação não mais se faz presente, ou é recriminada, a crise se inicia.

Na maioria das vezes, a procura de casais por terapia ocorre quando essa variável “intimidade” foi total, ou parcialmente, perdida. Numa relação que se encontra desgastada, a vulnerabilidade do outro acaba não sendo mais reforçada, mas sim punida. Por exemplo, o parceiro não tem mais paciência para aquele “defeito” já conhecido, para aquela forma tão particular de ser e funcionar, não parecendo mais “seguro” permanecer ali.

Com pessoas com as quais não temos uma relação íntima, ou em situações onde houve rompimentos de situações íntimas, nossas vulnerabilidades não foram aceitas ou acolhidas, mas sim punidas. Por exemplo, se você resolve chorar diante de alguém que não tem uma relação íntima de qualidade, essa pessoa poderá punir esse comportamento, ou não compreendê-lo: “Não acredito que você está chorando por isso, não tem por que!” – tal comportamento fará com que você não queira mais compartilhar suas vulnerabilidades com essa pessoa, e não se sinta conectada nem compreendida por ela.

Relações íntimas devem ser bidirecionais – as duas partes envolvidas precisam sentir-se aceitas, acolhidas e não terem dúvidas que podem contar um com o outro, mesmo que não se tenha compreensão sobre oque o outro está passando, mas sim aceitação do outro, tal como ele é. E vice-versa.

Essa natureza de exposição envolve riscos – pois todos têm na própria história vivências em que a vulnerabilidade foi punida, e com isso ter experimentado sofrimento ao permitir a intimidade.

Com o histórico de punição na intimidade, algumas pessoas apresentam certa tendência em interromper a relação, ou até mesmo agir de maneira ofensiva ou agressiva no cenário íntimo. Muitas vezes, ao visualizar a possibilidade de intimidade maior, literalmente “fogem” daquela relação – pois, em sua história, permitir intimidade está ainda associada a uma experiência dolorosa, com um alto custo.

Pessoas com um histórico de experiências negativas significativas em relações íntimas – seja em relacionamentos amorosos, ou outros relacionamentos afetivos (familiares, sociais, etc.), acabam apresentando dificuldades de se relacionar e estabelecer vínculos – não sendo muitas vezes sensíveis às demandas do parceiro, e/ou não conseguem se mostrar vulneráveis – e sofrem muito com isso, tanto por si mesmo quanto pelo parceiro (Tsai et al., 2009).  Muitas das queixas trazidas para a terapia de casais envolvem a dificuldade de estabelecer relações íntimas de qualidade.

Com as dificuldades de estabelecer relações íntimas de qualidade, a relação desgastada pode ter se tornado apenas uma relação apenas de proximidade: estou convivendo com outra pessoa, mas já não me encontro mais disponível ao seu modo de ser, já pareço não aceita-lo tal qual ele é, ou, já não me sinto aceito pelo outro, tal como eu sou. Já não há mais condição de poder ser quem se é, sem que isso seja punido, causando sofrimento para ambos.

O papel da terapia de casais é levantar as hipóteses que contribuíram para o rompimento dessa relação de intimidade, compreender esse processo de distanciamento e como começou a invalidação daquilo que o outro traz, e analisar a viabilidade da reconstrução, ou não, dessa relação.

Geralmente os casais buscam a terapia com a finalidade de reestabelecer a relação. Alguns casais conseguem perceber a perda de intimidade num estágio inicial, e tem grandes chances de conseguir reestabelecer um relacionamento íntimo novamente – ainda que isso signifique que ambos precisem revisitar possíveis distorções acerca do que seria cumplicidade e compreensão.

Também é comum que as crises entre os casais possam ser motivadas pelo adoecimento de um dos envolvidos na relação. Casos de depressão severa e ansiedade generalizada podem levar um dos parceiros a um alto grau de vulnerabilidade, que o torna incapaz de estar presente na relação, ou que exija que o outro precise se doar mais ao parceiro do que ele consegue naquele momento. Há situações em que nem sempre a terapia de casal será a primeira alternativa de intervenção, mas sim o cuidado individual para que a pessoa tenha condições de se reestabelecer, e com isso ter condições de se fazer presente no relacionamento, de forma lúcida, saudável e disponível.

A ciência tem comprovado que a qualidade das relações interpessoais é muito mais importante para a saúde física e mental das pessoas do que se supunha. O fator de risco a doenças físicas e mentais em pessoas que vivem relacionamentos destrutivos é muito grande. Ter relacionamentos íntimos de qualidade sejam eles romântico-afetivos, ou sociais (amizades, familiares, etc.), são fatores de proteção à saúde psíquica e física. Pesquisas na área de intimidade e relacionamento interpessoal indicam que se tivermos ao menos um relacionamento afetivo de qualidade na vida, esse relacionamento age como fator protetivo do indivíduo: pessoas que não tem relacionamentos íntimos de qualidade são mais propensas a riscos de vida do que pessoas dependentes de tabagismo, alcoolismo e outras dependências (Waldinger, R., 2017).

A Universidade de Harvard, durante quase 80 anos, tem realizado uma pesquisa que acompanhou a vida de 724 homens, ano após ano, abordando o trabalho, a vida doméstica e a saúde, além de realizar exames médicos. Os participantes que ainda estão vivos estão na casa dos 90 anos. Após alguns anos a pesquisa também incluiu as esposas desses homens, e atualmente se encontra em sua segunda geração, incluindo os filhos dessas famílias. A pesquisa é rica em resultados, sobre saúde psíquica e também física. As conclusões encontradas no estudo, relatadas pelo atual diretor responsável pela pesquisa, Dr Robert Waldinger, são realmente impactantes:

  • “Relações íntimas de qualidade são as maiores precursores de manutenção de felicidade ao longo da vida, muito mais poderosos que dinheiro, fama, status social, QI e até mesmo herança genética. Elas ajudam a postergar possíveis declínios mentais e físicos”
  • “A solidão mata: e é tão devastadora quanto o tabagismo ou o alcoolismo”.
  • “Boas relações íntimas não apenas protegem nossos corpos, mas também nossos cérebros. E isso que não quer dizer que bons relacionamentos signifiquem que não ocorram desentendimentos: Alguns dos casais octagenários participantes da pesquisa implicavam um com o outro dia sim, dia não, mas à medida que tinham certeza que poderiam contar um com o outro mesmo nas horas mais difíceis, essas dificuldades rotineiras de convivência pela diferente maneira de ser simplesmente não eram vistas como problema, e não tiveram impacto em sua saúde – pois sempre puderam contar um com o outro.”

De acordo com a Psicoterapia Analítica Funcional (tradução da sigla FAP, em inglês, Functional Analytic Psychotherapy), o cliente apresenta no processo terapêutico, com a figura do terapeuta, questões e dificuldades funcionalmente parecidas àquelas que apresenta em sua rotina, nas relações com as pessoas com as quais se relaciona (KOHLENBERG; TSAI, 1998). O mesmo ocorrerá quando o cliente é um casal: eles se comportarão no cenário terapêutico assim como costumam se comportar fora dali, caso seja bem direcionada a relação com o terapeuta – estabelecendo entre todos os envolvidos uma relação íntima de qualidade.

A FAP enfatiza a importância da expressão de emoções e sentimentos no processo terapêutico. O terapeuta acolhe as necessidades do casal, para que eles não fujam dessa vulnerabilidade, e consigam se expressar para que novas formas de vivências possam ser aprendidas. Quando ambos, terapeuta e cliente reforçam comportamentos vulneráveis, uma relação íntima – entre o casal e o terapeuta, está sendo construída.

A FAP traz para a sessão terapêutica a importância de se estabelecer com o casal uma relação em que haja “atenção” no cuidado de suas queixas, “coragem” para se expressar de forma vulnerável, e “amor” para que se responda de forma reforçadora às vulnerabilidades dos clientes.

Garantindo essa bidirecionalidade da relação íntima favorece que o casal, possa se encorajar a experimentar novas alternativas e diferentes sentimentos. Este efeito torna a intimidade um ingrediente valioso também da terapia, pois se arriscando e experimentando, aprende-se novas estratégias de vida.

Este texto foi escrito pela convidada Tatiana Francis Gaia que é psicóloga analítico comportamental, cursou Graduação e Mestrado na UFSCar e MBA em Gestão de Pessoas. Atua como Psicóloga Clínica desde 2012, além de ter experiência docente em cursos técnicos, pós-graduação e consultoria em Gestão de Pessoas. É psicóloga contratada do HCRP-FMRP-USP desde 2006, no Programa de Saúde Auditiva – Implante Coclear. Atualmente realiza avaliação e acompanhamento de implante coclear, e o atendimento clínico de adolescentes, adultos e casais, em Sertãozinho e Ribeirão Preto.

Fontes:

O que realmente nos faz felizes? As lições de uma pesquisa de Harvard que há quase oito décadas tenta responder a essa pergunta. Acessado em 10/04/2018: http://www.bbc.com/portuguese/curiosidades-38075589

WALDINGER, R. Good genes are nice, but joy is better. The Harvard Gazette. 11/04/2017.Acessado em 10/04/2018: https://news.harvard.edu/gazette/story/2017/04/over-nearly-80-years-harvard-study-has-been-showing-how-to-live-a-healthy-and-happy-life/

KOHLENBERG, R. J.; TSAI, M. Psicoterapia analítica funcional: criando relações terapêuticas intensas e curativas. Santo André: ESETec, 2001.36

PASSOS, J. Treinando intimidade e construindo relações mais profundas com a FAP. 05/11/2015. Acessado em 08/03/2017: https://www.comportese.com/2015/11/intimidade-e-fap

SILVEIRA, J. M., & GUENZEN,L. C.  Intimidade na relação terapêutica: Uma caracterização da palavra por terapeutas analítico-comportamentais. Psicol. Argum. 2013 jul./set., 31(74), 547-559

TED (2016, 25 de Janeiro). ROBERT WALDINTER: What makes a good life? Lessons from the longest study on happiness. Acessado em 10/04/2018: https://youtu.be/8KkKuTCFvzI.

TSAI, M., KOHLENBERG, R. J., KANTER, J. W., KOHLENBERG, B., FOLLETTE, W. C., & CALLAGHAN, G. M.A guide to functional analytic psychotherapy: Awareness, cour­age, love, and behaviorism. Nova York: Springer. 2009.

VANGERBERGHE, L., BORGES PEREIRA, M.O papel da intimidade na relação terapêutica: uma revisão luz da análise do comportamento, Psicologia: Teoria e Prática 2005, 7 (1). Acessado em 12/04/2018, Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=193817415010

VILLAS-BOAS, A. Psicoterapia Analítica Funcional (FAP): entendendo o cliente na relação terapêutica. 7 ago. 2012. Acessado em 10/04/2018. https://www.comportese.com/2012/08/psicoterapia-analitica-funcional-fap-entendendo-o-cliente-na-relacao-terapeutica

 


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